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Internet define subjetividade no final do século

 

Relações travadas via computador já são um hábito em todo o país, mas profissionais questionam seus efeitos e há mesmo quem defenda a censura na rede

 

Bella é uma garota francesa que mora em Nova York e freqüen- ta com grande regularidade as salas de conversa (chat) da internet. Como tantos outros que se encontram na rede para um bate-papo, Bella também descobriu ali uma maneira fácil e barata ? pelo menos em tese ? de trocar informações e emoções. Iniciou uma paixão virtual e quase perdeu o namorado quando este a confundiu com uma outra, que adotava o mesmo nickname (apelido) na internet. ?Numa das vezes que estava conectada, apareceu uma mensagem de uma outra Bella pedindo socorro?, lembra a mineira de Belo Horizonte, Isabella. A confusão se formou quando o namorado da garota francesa pensou que sua Bella estava se comunicando com outras pessoas pela rede e interpretou o fato como traição. Nesses chats só é permitido a uma pessoa usar determinado nick. Assim, a forma encontrada pela garota de Nova York para desfazer o mal-entendido foi pedir a Isabella para que enviasse uma mensagem ao namorado dela explicando tratar-se de duas pessoas diferentes. ?Fiz o que ela pediu, mas acho que o namorado não se convenceu totalmente?, conta Bella-BH, nick que passou a usar depois do episódio.

 

Toda essa confusão dificilmente aconteceria fora da rede. Além da presença física, outras possibilidades de comunicação entre dois namorados, como uma conversa pelo telefone, uma fita gravada ou uma carta escrita pelo próprio punho poderiam até causar algum mal-entendido, mas nunca em proporção equivalente à descrita acima. Seja pela voz ou pela caligrafia, o receptor da mensagem tem indicativos mais claros sobre quem é seu interlocutor. Como a virtualidade sempre deixa dúvidas, pela internet é mais difícil encontrar tais pistas. Limitações à parte, a verdade é que a rede mundial de computadores, a mais anárquica e livre forma de se comunicar de que se tem notícia, popularizou-se nesta década em velocidade comparável à praticada pelos bits na transmissão das informações contidas na memória do computador. Obviamente, a razão desse sucesso todo se explica pela facilidade com que essa comunicação ocorre. E também pelo preço: com o valor de uma ligação local, o usuário pode se conectar a qualquer parte do mundo. Frente a essas facilidades, os adeptos da internet crescem em número e aos poucos começam a dominar a linguagem e a rastrear as possibilidades que a rede oferece a seus usuários. Só no Brasil, durante o ano de 1996, o número de usuários pulou de 110 mil, em março, para um milhão de pessoas em dezembro.

 

Facilidades

 

A comunicação on-line encurta as distâncias e derruba as fronteiras construídas em milhares de anos de história. Depois de sua chegada, ficou mais fácil conversar com uma pessoa do outro lado do mundo através do computador do que, muitas vezes, encontrar um vizinho. ?Falo mais freqüentemente com uma irmã que mora em Boston (EUA) do que com a outra que está na mesma cidade que eu?, conta Bella-BH. Aliás, foi exatamente para facilitar ? e baratear ? a comunicação com a irmã que mora nos Estados Unidos que Isabella resolveu se conectar à rede mundial de computadores, em março de 1996. Em muito pouco tempo, no entanto, descobriu as maravilhas do mundo virtual. E ela, que sempre gostou de passar noites acordada, encontrou rapidamente companhia para suas madrugadas. Fez muitos amigos na internet e hoje considera-se uma viciada pela rede. ?Sentada diante da tela e com o conforto que você quiser, o mundo vem até a sua casa?, argumenta. Com tantas opções a serem exploradas, Bella passou a ficar cada vez mais tempo diante do teclado. Seu recorde mensal até agora: 140 horas. ?Vira uma cachaça?, brinca a mineira. Embora, atualmente, já não passe tanto tempo assim ?plugada? no computador, ela não consegue mais abrir mão dos benefícios desse mundo eletrônico. ?Ajuda bastante a combater a solidão da gente, mas pode ser perigoso para as pessoas que valorizam apenas as relações virtuais?, diz.

 

Os adolescentes são os mais vulneráveis. Muitos iniciam namoros sérios ou passam muitas horas em salas de conversa e sites que abordam temas como sexo e violência. ?São os que mais mentem?, diz Nin@, uma frequentadora de chats desde dezembro de 1996. Nin@ é economista e entra no pate-papo quase diariamente. Para ela, uma forma de relaxar e conhecer pessoas. Zel, nick da analista de sistemas Ivanise Maravalhas Gomes, conheceu Miguel ? ou Trovador, como costuma se identificar para os amigos virtuais ? numa dessas salas de bate-papo. Os dois ficaram amigos, conheceram-se pessoalmente e há um ano e meio iniciaram um romance. Trovador mora no Rio de Janeiro e estuda psicologia. Zel mora em São Paulo. Eles se comunicam diariamente pela rede e se encontram pessoalmente quando isso é possível. Sexo virtual não acontece entre eles. ?Usamos a internet por ser a forma mais barata de nos comunicarmos. Namoro, só pessoalmente mesmo?, explica Zel. Usuária da rede há mais de dois anos, Zel afirma sempre ter encontrado muita solidariedade entre os amigos da rede. ?É muito comum você receber dicas dos internautas mais experientes?, diz. Apesar de reconhecer a existência de tipos mais brincalhões, Zel conta que pelo menos a maior parte das pessoas que conhece fala a verdade. ?Sei de um garoto que anota num caderno as características dos personagens que inventa e das mulheres com quem conversa, para não cometer enganos quando volta a falar com essas pessoas. Mas ele é exceção entre meus amigos?, explica ela. ?Fujo de pessoas não criativas e que não conseguem manter uma conversa inteligente, e não mitifico esse espaço. Trato-o como qualquer outro lugar que eu freqüento?, conta por sua vez Nin@.

 

Bella-BH, assim como Zel e Nin@, acha que consegue manter um distanciamento saudável com o computador. Também já fez muitos amigos. E reais. ?Quando vou a São Paulo, hospedo-me na casa deles?, conta. Ela admite ainda haver os freqüentadores do chat que preferem se manter no anonimato. ?Tenho um amigo que não gosta de ir aos encontros que patrocinamos, mas está sempre presente às conversas virtuais?, diz Bella. Ou seja, um representante típico daqueles que sentem dificuldades de transpor as barreiras previstas em formas habituais de relacionamento, que acreditam que possam fazê-lo com maior facilidade através do computador.

 

Mas há outros aspectos a serem analisados. E há quem considere que a internet também representa riscos para seus usuários. ?Protegidos pelo computador, criminosos potenciais podem encontrar coragem para agir?, acredita a advogada Sandra Gouveia, que usou a internet para fazer uma tese sobre os crimes cometidos na rede. A monografia foi apresentada no final do seu curso de pós-graduação, na Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, em 1995, e vai ser transformada em livro, a ser publicado ainda este ano por uma editora carioca. Analisando principalmente a legislação específica e os processos americanos sobre o tema, a advogada chegou a conclusões em sua pesquisa que desmentem algumas crenças amplamente divulgadas sobre a rede. ?A privacidade no mundo eletrônico é facilmente violável?, explica Sandra. Para ela, crimes cometidos por mero prazer, curiosidade, desafio ou com objetivos comerciais não são ações fáceis de serem coibidas na rede. Ainda segundo suas informações, tais pessoas interceptam e-mails confidenciais, destroem arquivos, apropriam-se de senhas de cartões de crédito praticando golpes milionários no mercado financeiro, corrompem menores ou negociam drogas, sem que muitas vezes seja possível punir ou nem sequer encontrar os culpados.

 

Defensora de criação de legislação específica e de polícia especializada para combater os crimes, a advogada toca numa questão delicada: a censura na rede. Criada para ser uma forma livre de comunicação, a internet não tem nem pode ter dono. Grupos de usuários de todo o mundo tentam estabelecer um código ético a ser seguido, mas transgressões graves como estelionato, planejamento de homicídio ou suicídio, receitas de bombas, só para citar alguns desses delitos, começam a dividir as opiniões. ?Surgem os crimes e, logo em seguida, as soluções. E novos crimes para burlar as soluções encontradas?, opina Bella-BH. Como usuária, a mineira diz haver ética na rede. ?Eu mesma já assinei várias manifestações contrárias a propagandas racistas e pró-violência.?

 

Aspectos Psicológicos

 

A polêmica sobre as facilidades e os perigos desse mundo interativo já se instaurou entre os especialistas do comportamento humano. Alguns psicólogos, por exemplo, enxergam com bons olhos o crescimento dos relacionamentos virtuais: pode ser um estímulo para os mais tímidos. Outros, como a professora do Departamento de Psicologia Social da USP Sueli Damergian, acreditam que esse tipo de relação interpessoal contribui para afastar ainda mais as pessoas. ?No contexto da globalização, cada um é definido por sua capacidade de consumo?, argumenta. ?A tendência de exclusão dos que não se enquadram nessa nova ordem é grande?, completa. Para a professora da USP, a relação entre excluídos e privilegiados, numa sociedade como a nossa, já é difícil, pois os primeiros são comumente vistos como ameaça pelos segundos. Oferecer um instrumento como a internet pode tornar a possibilidade de relação entre pessoas com níveis sociais diferentes ainda mais remota. ?Não se tem nem mais o limite da nacionalidade?, argumenta a psicóloga. Donos do conhecimento e da vontade, e de posse dos controles do computador, certos usuários da rede podem ter a impressão de que serão capazes de exercer domínio sobre todas as coisas e que poderão ter o mundo a seus pés, ou melhor, nas mãos. ?Só me relaciono com aquilo que me gratifica?, poderia dizer um internauta inveterado. Mas, se isso parece ser um bom argumento para alguns, para Sueli tal raciocínio não tem nada de saudável e além de tudo é perigoso. O acesso às informações mais disparatadas e o poder de ?deletar? o outro quando este não corresponder àquilo que se espera dele, leva, na opinião dela, à gratificação de mecanismos dos mais primitivos. ?Incrementa-se um componente infantil que é a onipotência?, esclarece Sueli. Ela ainda chama a atenção para um outro aspecto: o estímulo à voracidade. ?Cria-se no indivíduo necessidades que, na verdade, ele não tem?, afirma. ?A pergunta que devemos nos fazer o tempo todo é se realmente há necessidade de tal demanda?, completa a psicóloga.

 

Se é possível ou não encontrar um limite saudável para o uso do computador e das maravilhas que ele oferece, ainda não dá para saber com precisão. Mas há algo que é inegável. A internet conquistou o mundo e veio para ficar. Ninguém sabe ao certo quantos são os seus usuários, mas sua popularidade captura indivíduos de todas as raças, profissões e idades. E a velocidade impressionante com que tem arrebanhado mais e mais adeptos pode ser, de certa forma, medida pelo papel que já ocupa no nosso imaginário. Os neologismos tirados dos comandos do computador invadiram a mídia, as salas de aula, o ambiente de trabalho. E existe até uma nova síndrome sendo identificada: o netvício.

 

O distúrbio ocorre em aficionados por computador, quando suas relações pessoais e familiares começam a se alterar por conta das horas dispensadas à máquina. A pista mais concreta para se chegar a essas vítimas são os valores exorbitantes de suas contas telefônicas. Cada vez mais distantes dos familiares e vizinhos, esses indivíduos são capazes de revelar seus segredos mais íntimos a pessoas que provavelmente nunca verão em carne e osso. Tal vício leva-os ainda a verificar se há mensagens no e-mail a cada minuto. E muitos já reconhecem em si próprio o distúrbio e começam a se organizar em grupos de ajuda. ?É uma das possibilidades saudáveis, porque indica que essas pessoas são críticas em relação aos riscos que há em embarcar numa viagem virtual?, analisa Sueli.

 

Há, por outro lado, terapeutas virtuais dispostos a tratar a síndrome on-line, o que nos leva à irresistível analogia: seria comparável a discutir o alcoolismo na mesa do bar? Nos Estados Unidos, o uso da internet por profissionais da área médica já é comum. Há entidades formadas, como a Health on the Net Foundation (HON), com o objetivo de agregar e defender os interesses desses profissionais. Pela rede, pode-se encontrar uma lista extensa de terapeutas que atuam nessa área, que eles próprios denominam ciberterapia ou psicoinformática. Nos programas de busca disponíveis na rede pode-se encontrar dezenas de ofertas desse tipo.

 

No Brasil, a moda da terapia on-line também começa a pegar. Marcelo Salgado, um dos primeiros terapeutas a atender pela internet, defende a utilização da rede para esse fim. ?Não se pode confundir atendimento psicológico por telefone com serviços on-line com computador Pentium Multimídia, 16 Mb de memória RAM e videocâmara para videoconferências?, justifica o psicólogo. Para Salgado, são inegáveis os avanços da informática para tornar cada vez mais ?real? o encontro entre duas ou mais pessoas pelo chat. ?O cara a cara já existe na internet?, argumenta ele. Sem deixar de reconhecer que o assunto é para lá de polêmico, Salgado defende-se lembrando que a terapia on-line é realidade em muitos países, como Estados Unidos, Inglaterra e Canadá. Considera importante a iniciativa dos órgãos que regulamentam a profissão do psicólogo em estimular o debate entre os colegas do Brasil, mas já adianta sua opinião. ?É censurável a intenção de censurar os serviços de psicologia on-line?, diz Salgado.

 

Na página criada por ele na internet, pode-se esclarecer dúvidas sobre os tipos de atendimentos psicológicos disponíveis e sobre como funcionam essas terapias. Quanto aos órgãos que regulamentam a profissão no Brasil, a prática é condenada e grande parte dos psicólogos não está vendo com bons olhos essas terapias. ?As grandes angústias dos seres humanos são geradas no seu contato humano. Como tratar isso através de uma máquina??, indaga Sueli Damergian. ?Soa como acreditar que o homem pode ser tão programável quanto o computador?, conclui. Programáveis e operadas por humanos, essas máquinas foram criadas para serem instrumento a serviço da humanidade. ?A internet não pode se tornar uma arma?, adverte Sandra Gouveia. Impedir que isso ocorra depende exclusivamente de seus usuários. ?Seria interessante que houvesse um limite de uso e a internet servisse para o que realmente interessa: auxiliar a pesquisa?, acrescenta Sueli Damergian.

 

Obs.: As opiniões de Marcelo Salgado contidas na matéria foram retiradas de textos dele na internet, cuja íntegra encontra-se disponível no site www.cearaonline.com.br/a noticia.

 

Fonte: http://www.crpsp.org.br

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