Uma
Linda Mulher
Contardo Calligaris(*)
Se você
ama uma mulher por ela ser prostituta, tente entender a fantasia que está atrás
de seu amor.
Numa cobertura da Vila Leopoldina, em São Paulo, na noite de 19 de
maio, Elize Araújo Matsunaga, 30, assassinou o marido, Marcos Matsunaga, 42,
com um tiro na cabeça. Na manhã seguinte, com uma faca de cozinha, Elize
esquartejou o cadáver, de modo a poder transportar os pedaços em três malas.
Logo, ela foi se desfazer das malas e da faca.
Esse
fato de crônica tem tudo para se tornar literatura de cordel. Há o sangue frio
de Elize depois do crime. Há a diferença social entre Marcos, empresário e
herdeiro da Yoki, que acaba de ser vendida por R$ 1,7 bilhão, e Elize,
enfermeira e bacharel em direito, mas de origem bem humilde.
Além
disso, o ciúme foi um dos motivos: na noite do crime, Marcos acabava de ser
confrontado por Elize, que conseguira a prova da infidelidade do marido. Mais:
o horror aconteceu depois de seis ou sete anos do que foi, ao que tudo indica,
uma genuína paixão; a filha, de um ano, estava no apartamento, dormindo,
durante o crime; foi Marcos que transmitiu a Elize o interesse pelo tiro e
pelas armas (havia 30, todas registradas, no apartamento).
Mas,
acima de tudo, o que transforma a história do casal em matéria de cordel é o
fato de que Marcos encontrou Elize, em 2004, num site de garotas de programa.
A
informação parece ser repetida pela imprensa como uma mensagem aos homens: olhe
o risco que você corre, se você amar uma prostituta e casar com ela.
Ora,
quero corrigir esse lembrete. Se você se apaixonar por uma prostituta (ex ou
não, tanto faz) e quiser se casar com ela, recomendo apenas uma cautela, que
não tem nada a ver com sua futura mulher e tudo a ver com você.
Claro,
a culpa do crime de 19 de maio é só de Elize, mas o lembrete preventivo é para
os homens, embora chegue tarde para Marcos.
Se
você ama uma mulher que por acaso é prostituta, aí, tudo bem; mas, se você ama
essa mulher POR ELA SER prostituta, atenção: nesse caso, seria sábio você se
familiarizar com a fantasia que sustenta seu amor. Qual é, em geral, a fantasia
em questão?
Todo
mundo se lembra de "Uma Linda Mulher", filme adorável de Garry
Marshall, em que o rico Edward (Richard Gere) se apaixona por Vivian (Julia
Roberts), uma prostituta que ele "levantou" na rua. Será que a
história de Marcos e Elize é "Uma Linda Mulher" sem o final feliz? De
fato, sempre pensei que, depois dos sorrisos do fim do filme, Edward e Vivian
acabariam mal -talvez não tão mal quanto Marcos e Elize, mas mal. Por quê?
Logo
quando Edward decide trazer Vivian para o seu mundo, ele "acha graça"
confessar a um amigo que aquela linda mulher que está com ele é uma prostituta
de rua.
Prognóstico
inelutável. Um dia, Edward não resistirá à fantasia que lhe fez escolher
Vivian: ele a humilhará (e se humilhará), lembrando, eventualmente diante de
amigos e parentes, que Vivian vem da sarjeta e que ele poderia jogá-la de volta
para lá.
Na
noite do dia 19, segundo a confissão de Elize, Marcos a ameaçou: "Vou te
mandar de volta para o lixo de onde você veio". Ele também declarou que,
se a mulher quisesse se separar, a filha ficaria com ele, pois será que um juiz
daria a guarda da menina a uma prostituta? (Eu aposto que sim, mas sou
otimista...).
Em
regra, o desejo de um homem que se apaixona por prostitutas (e planeja
"redimi-las") é sustentado por uma fantasia (inconsciente) de
vingança -contra a mulher e contra ele mesmo, por ter se deixado seduzir.
Explico.
A
sexualidade de muitos homens é patologicamente neurótica: eles olham para o
sexo pelo buraco da fechadura do quarto dos pais. Nessa ótica infantil, não se
salva ninguém: é "puta" qualquer mulher que vai com os outros, ou
seja, todas as mulheres são "putas", inclusive a mãe (surpreendentemente),
porque ela vai com pai, padrasto e companhia -enquanto, para a gente, ela só
tem carinho contido.
Para
o homem de calça curta, ajoelhado diante da fechadura, a "puta" é um
paradoxo: vergonhosamente acessível a todos, salvo a ele.
É
nessa infantilidade que nascem a misoginia básica, o gosto da violência contra
as prostitutas, a ideia de que todas as mulheres, se não são prostitutas,
sonham com isso e uma preferência amorosa quase exclusiva por meretrizes.
Quando
um desses homens ama uma prostituta e se casa com ela, seu ressentimento pode
se calar em nome do amor, mas só por um tempo: ainda ele vai puni-la por ter
sido e ser para sempre a "puta" que vai com os outros.
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@ccalligaris
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/48573-uma-linda-mulher.shtml