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Sonhar é um fenômeno que sempre chamou poderosamente a atenção do ser humano. O relativo descaso conferido aos sonhos na atualidade pode ser considerado mais a exceção do que a regra, já que em outros momentos históricos e em outras culturas eles despertavam tanto interesse quanto os acontecimentos da vigília, ou até mais. Na nossa tradição ocidental, temos os bem conhecidos exemplos da Bíblia e autores clássicos tão respeitáveis como Platão e Aristóteles têm nos legado um considerável número de escritos que nos falam da importância outorgada aos sonhos na sua época.
Texto de autoria de Carlos Bein. Formado em psicologia pela Universitat Autònoma de Barcelona (Espanha). Mestre em Ciências da Religião pela Pontifícia Universiade Católica de São Paulo. Especialidade no psicodiagnóstico de Rorschach pela Societat Catalana del Rorschach i Métodes Projectius (Barcelona, Espanha). Especialização em Teoria Junguiana coligada a Técnicas Corporais (Instituto Sedes Sapientiae, São Paulo). Terapeuta parceiro na Clínica CEAAP, onde coordenou diversos cursos sobre Jung e os sonhos, e realizado supervisões individuais e de grupo na linha junguiana

O pensamento dominante no Ocidente durante os três últimos séculos impõe dificuldades para estudar este fenômeno. Por um lado, porque as leis que regem o mundo da vigília não são iguais às que imperam nos sonhos: neles se realizam ações tão extraordinárias como voar sem nenhum tipo de ajuda, respirar embaixo d’água, dialogar com duendes e fadas, ou caminhar entre as chamas sem sofrer o menor dano. Por outro lado, por serem os sonhos só acessíveis através do relato dos sonhadores, é muito difícil aplicar os parâmetros objetivos requeridos habitualmente pelo método científico.

A partir de Freud, o estudo dos sonhos recobrou um respeito perdido fazia muito tempo ao abrir a possibilidade de ser abordado cientificamente. Diversos autores têm elaborado desde então suas respectivas visões para se aproximar do tema, centrando-se em sua aplicação na psicologia clínica.

Paralelamente, o público geral foi recuperando o interesse nos sonhos que, embora não estivesse completamente perdido, tinha ficado relegado ao anedótico. Hoje, há cada vez mais livros com um enfoque sério acessíveis ao leitor não especializado, assim como cursos e grupos de trabalho com sonhos dos quais a pessoa pode se beneficiar sem estar precisando necessariamente de psicoterapia. Prestar atenção aos sonhos, fazer um diário e participar de um grupo de trabalho com sonhos são atividades que, em nossos dias, vem realizando um número crescente de pessoas em todo o mundo, e isso pelos mais diversos motivos: para uns, facilita ou enriquece as relações afetivas; a outros proporciona um maior rendimento e criatividade no trabalho; há também os que sentem clarificar suas inquietações espirituais, assim como os que participam simplesmente por estarem interessados no mundo dos sonhos.

Ainda existe, porém, uma tendência a considerar os sonhos como algo prescindível. Podem despertar a curiosidade de muitas pessoas e não é raro, em conversas casuais, alguém admitir ter ficado profundamente impressionado com algo que sonhou em determinado momento, mesmo sem compreender muito bem o motivo dessa fascinação. Mas muitos são ainda os que consideram mera superstição a possibilidade de extrair um ensinamento dos sonhos, ou mesmo aceitando a possibilidade de um trabalho sério com esse fim, não sabem onde procurar, não confiam nas ofertas que podem aparecer ou, simplesmente, na hora de lhes dedicar o tempo e o esforço necessário, consideram que existem outras prioridades.

Habitualmente, enxergamos a nós mesmos e ao mundo a nossa volta através de determinados hábitos de percepção formados ao longo da nossa história pessoal, a partir da educação que recebemos e de formas rotineiras de atuação que temos adotado mais ou menos irrefletidamente. Estes hábitos dificultam tomar consciência das infinitas possibilidades que oferece a vida. Os sonhos mostram aquilo que foi deixado de lado durante a vigília, oferecendo-nos a oportunidade de reconsiderar nossos preconceitos e ressarcir erros.

O problema é que, por estarmos acostumados demais a nossos pontos de vista habituais, não conseguimos entender o que os sonhos nos dizem. Utilizando uma linguagem natural, os sonhos sempre ampliam a perspectiva do sonhador; mas trata- se de uma linguagem que esquecemos e temos de redescobrir.

No meu sonho, eu via passar caminhões. Nas caçambas, uns homens armados vigiavam caixas onde havia meninos presos. Eu me sentia confusa e desesperada contemplando a cena.

Este sonho teve Clara, 22 anos de idade. Estava no último ano de uma carreira que tinha cursado com notas brilhantes, abria-se a sua frente um futuro profissional promissor e a perspetiva de seu casamento próximo, com um rapaz muito bem situado. Segundo ela, não havia nada mais que pedir à vida, as coisas não podiam andar melhor Não obstante, ela sofria freqüentes crises de pânico e de pesadelos; mas estava conseguindo tudo aquilo que, desde pequena, lhe diziam bastar para ser feliz. Já havia algum tempo, tomava tranqüilizantes receitados por seu médico, mas ela considerava que só paliavam o problema, sem o solucionar de fato. E, mesmo sem os compreender, ela intuía que seus sonhos continham a chave do que lhe estava acontecendo. Foi assim que decidiu entrar num grupo de trabalho com sonhos.

“A arte de interpretar sonhos não se aprende em livros”, costumava dizer Jung (1). A linguagem dos sonhos não é comparável a um idioma convencional, cuja tradução se obtém em um dicionário. Pelo contrário, trata-se de deixar as próprias imagens desenrolarem seu significado. Assim, após passar um tempo examinando e revivenciando as imagens do seu sonho, Clara pôde identificar a angústia que sentiam os meninos presos nas caixas como o medo que ela sentia perante a vida. Além disso, ao sondar o talante daqueles homens armados que os vigiavam, ia-se-lhe revelando como muito próxima a sua própria atitude rígida e disciplinada, intransigente consigo mesma e com as pessoas com quem convivia, uma atitude que Clara não ousava questionar. Ao lhe propor que liberasse na sua imaginação as crianças do sonho, ela pode experimentar uma alegria que não se permitia sentir desde a adolescência.

A partir desse momento, ela começou a perceber o sentido que lhe oferecia uma vida que ia além de uma imagem socialmente correta. Aos poucos, ela foi abrindo espaço no seu interior a uma sensibilidade que dulcificou e refrescou sua existência, afundada até aquele momento numa escrupulosidade exagerada e numa desoladora pobreza espiritual. Talvez tivesse sido mais cômodo não escutar o seu sonho e deixar as coisas seguirem seu curso, mas Clara optou por se comprometer com as novas possibilidades de transformação interna que se lhe apresentavam e que, no decorrer do tempo, a conduziram a um enriquecimento existencial e a viver a vida com maior intensidade.

Às vezes, podemos nos sentir cômodos adotando uma atitude equivocada, mas se não a corrigimos a tempo as conseqüências são desastrosas. Luís, com trinta e um anos, decidiu abrir um negócio associando-se a um antigo companheiro de escola. Começou muito bem, parecia que tudo andava sobre rodas, quando uma noite ele teve este sonho:

Estou indo no carro do meu sócio, ele dirige e eu estou no banco de trás. Um golpe de vento faz girar o carro repentinamente. Eu digo a mim mesmo: “Começou!”, como se eu já soubesse o que ia acontecer. Protejo meu rosto com minhas mãos, preocupado com o que possa me acontecer. Um tornado faz o carro girar como um pião até os vidros estalarem. Um instante mais tarde, eu me vejo junto ao meu pai; ele diz que eu passei sete meses em coma. Estou com as mãos destroçadas pelos vidros, quase não as posso mover. Lamento-me do meu estado, mas ele me diz que podia ter sido pior. Ao que parece, meu sócio se cortou levemente no rosto.

Luís compartilhou este sonho no grupo de trabalho com sonhos. Num momento do trabalho foi lhe sugerido que se imaginasse, ele mesmo, como sendo o tornado do sonho. Luís expressou o que sentia neste papel com as seguintes palavras: “Sou poderoso, eu posso fazer o que me der na telha”. A seguir, elaborando sobre como se sentia em relação ao tema do poder, foi comentando que, apesar de ter sido pactuado que ambos teriam iguais competências na direção do negócio, o sócio o estava deixando cada vez com menos capacidade de decisão, ignorando as suas propostas e tomando iniciativas relevantes sem o consultar. Luís estava sendo relegado a um papel cada vez mais secundário, passando de fato a agir mais como secretário do seu sócio do que como co-diretor. Assim, no sonho o sócio estava dirigindo o próprio carro e Luís se deixava levar no banco de trás. Mas o Luís não queria ou não podia ver isso – no sonho, as mãos cobriam seus olhos. Na sua imaginação, reivindicar seus direitos eqüivalia a ser despótico ou mesquinho, e esses eram comportamentos que ele odiava. Queria salvar sua imagem, do mesmo modo que no sonho protegia o rosto. Entretanto, a partir do trabalho realizado com esse sonho ele pôde tomar consciência de uma série de medos e bloqueios que lhe impediam de avaliar adequadamente o que estava sucedendo. Decidiu então adotar uma atitude mais enérgica que, além de transformar profundamente aquela autoimagem de pessoa amável e respeitosa, lhe permitiu sair de uma confusão da qual, se tivesse continuado com sua atitude anterior, dificilmente teria se livrado – no sonho não podia mover as mãos.

Com certeza, quando se está passando por uma crise, é mais fácil questionar os pontos de vista pessoais. Contudo, ver as coisas de um modo diferente e atuar em conseqüência dá medo. Preferimos nos guiar pelo velho ditado: “É melhor o mau conhecido que o bom por conhecer”. Quebrar esquemas assusta, é mais fácil se agarrar aos valores que dita a sociedade, desdenhando a própria verdade interior. Os sonhos são a voz de nossa natureza mais íntima e neles se expressa o mais autêntico de nós mesmos. Eles mostram um caminho e segui-lo representa uma aventura que conduz ao autêntico sentido da vida, desmascarando aquelas atitudes incongruentes com o nosso ser mais profundo, que dominam nossa forma de pensar e agir. Isso nos permite superar limitações que só existem em nossa fantasia. Compreender nossos sonhos nos abre a porta a um caminho de transformação, evolução e superação.

(1) Jung, C. G.: “Civilização em transição”. CW 10, § 325. Vozes, Petrópolis, 1993

Bibliografia recomendada:

Delaney, Gayle – O Livro de Ouro dos Sonhos – Ediouro Publicações, Rio de Janeiro, 2000

Bosnak, Robert – Breve Curso Sobre Sonhos: técnica junguiana para trabalhar com os sonhos – Paulus, São Paulo, 1994

Bosnak, Robert – Desvendando os Mistérios dos Sonhos – Nova Era (ed. Record), RJ 2002

Thurston, Mark – Sonhos: respostas desta noite para as dúvidas de amanhã – Editora Pensamento, São Paulo, 1997

Texto de autoria de Carlos Bein. Formado em psicologia pela Universitat Autònoma de Barcelona (Espanha). Mestre em Ciências da Religião pela Pontifícia Universiade Católica de São Paulo. Especialidade no psicodiagnóstico de Rorschach pela Societat Catalana del Rorschach i Métodes Projectius (Barcelona, Espanha). Especialização em Teoria Junguiana coligada a Técnicas Corporais (Instituto Sedes Sapientiae, São Paulo). Terapeuta parceiro na Clínica CEAAP, onde coordenou diversos cursos sobre Jung e os sonhos, e realizado supervisões individuais e de grupo na linha junguiana