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INTRODUÇÃO

Com este trabalho pretendo refletir sobre a fobia e o seu tratamento, apoiando-me num estudo de caso. O meu objetivo é justificar a aplicação da dessensibilização sistemática, técnica corporal baseada no modelo comportamental, no contexto de um atendimento de orientação junguiana.

Também quero mostrar como os sonhos podem oferecer um ponto de vista privilegiado para a observação dos processos psíquicos globais envolvidos na fobia, assim como das repercussões do seu tratamento.

As teorias junguiana e comportamental parecem partir de princípios tão diferentes que, de entrada, parece difícil acreditar na possibilidade de integrar ambas num atendimento. No entanto, nos textos de Jung pode-se encontrar recursos para fazê-lo, ora a partir do princípio de complementaridade, ora a partir da teoria dos complexos.
Texto de autoria de Carlos Bein. Formado em psicologia pela Universitat Autònoma de Barcelona (Espanha). Mestre em Ciências da Religião pela Pontifícia Universiade Católica de São Paulo. Especialidade no psicodiagnóstico de Rorschach pela Societat Catalana del Rorschach i Métodes Projectius (Barcelona, Espanha). Especialização em Teoria Junguiana coligada a Técnicas Corporais (Instituto Sedes Sapientiae, São Paulo). Terapeuta parceiro na Clínica CEAAP, onde coordenou diversos cursos sobre Jung e os sonhos, e realizado supervisões individuais e de grupo na linha junguiana
SÍNTESE TEÓRICA

O modelo comportamental

Podemos explicar a fobia e as bases do seu tratamento a partir das princípios formulados por Watson, autor considerado um dos fundadores do comportamentalismo. Para este autor, todos os fenômenos psíquicos se reduzem a movimentos corporais:

"Para Watson o sistema nervoso funciona sempre por arco reflexo completo, isto é, comportando: 1º) a excitação periférica, que desencadeia o influxo sensorial aferente; 2º) a passagem por um centro, onde se desencadeia o influxo motor eferente. Nesta base, justifica-se a pretensão do behaviorismo de reduzir a Psicologia ao estudo do comportamento". (Foulquié, 1977, p.108)

Segundo este modelo, a fobia é considerada resultado de uma aprendizagem: a pessoa fóbica aprendeu a ter medo de um estímulo ou situação originariamente neutro. Ao associar a ansiedade a uma determinada situação, mediante a esquiva evita-se repetir essa experiência desagradável e, assim, produz-se um reforço cada vez maior. Eis a Teoria dos Dois Fatores de Mowrer: a esquiva impede que aconteçam os sintomas aversivos associados ao objeto temido e, consequentemente, é reforçada de modo operante, produzindo-se deste modo um círculo vicioso. Em outras palavras, quanto maior for o medo, maior será a esquiva, ao tempo que, quanto maior for a esquiva, maior será o medo. Deste modo, haverá casos nos quais a esquiva tornar-se-á tão intensa que acarretará um enorme prejuízo pessoal e profissional para o indivíduo.

A dessensibilização sistemática

A dessensibilização sistemática de Wolpe (Caballo, 1994, p.6) é um de entre vários tratamentos comportamentais para a fobia. Baseia-se no conceito de habituação e tem como objetivo extinguir o comportamento de esquiva mediante a redução ou a eliminação da ansiedade.

Para o tratamento, diferencia-se entre o nível dos estímulos (situações que produzem ansiedade) e o das respostas. No referente às respostas, o paciente aprende a reconhecer aqueles signos e sintomas mais marcantes nas suas crises de ansiedade. Como vimos ao falar de Watson, para o modelo comportamental a ansiedade, como qualquer outra atividade psíquica, encontra-se localizada no corpo. Constrói-se então, junto ao paciente, um inventário de estímulos fóbicos, ordenados do menor ao maior segundo o grau de ansiedade que provocam. Logo depois, é pedido ao paciente para vivenciar as situações-estímulo e também é treinado numa técnica de relaxamento para reduzir ou eliminar a ansiedade associada a elas; em outras palavras, é realizado um trabalho corporal para reduzir ou eliminar os sintomas fisiológicos da ansiedade.

O princípio de complementaridade

Jung tinha uma abertura de miras que lhe permitiu sintetizar conclusões de estudos experimentais rigorosos, da prática clínica, da história das religiões, da antropologia e da física entre outros muitos campos. Em relação à física, Jung percebeu que existia uma correspondência entre o princípio de complementaridade da física quântica e suas próprias idéias a respeito da psicologia. Para a física quântica, diferentes imagens intuitivas utilizadas para descrever os sistemas atômicos podem ser, em separado, perfeitamente adequadas a diferentes experimentos, apesar de se excluírem mutuamente (Heisemberg, W., 1976, pp.33-34). Por exemplo, para um experimento pode ser adequado conceber o átomo como sendo constituído por um núcleo e os elétrons girando a sua volta, a semelhança de um sistema planetário; para outro experimento, encaixaria melhor a imagem do núcleo rodeado por um sistema de ondas estacionárias. Estas duas imagens podem ser verdadeiras quando utilizadas no momento apropriado, apesar de serem incompatíveis entre si.

Jung adotou em vários dos seus textos a expressão "princípio de complementaridade" da física quântica para referir-se à psicologia. Segundo ele, uma teoria pode ter o seu valor, mas nunca conseguirá abranger sozinha a totalidade da psique. Portanto, diferentes abordagens psicológicas vão nos ajudar a enxergar a partir de diferentes ângulos esse universo incomensurável que é o psiquismo humano. Cada uma dessas visões será, necessariamente, incompleta. É errôneo acreditar que um determinado modelo é o único válido e que todos os demais estão errados. De modo semelhante ao afirmado na física quântica, pontos de vista incompatíveis podem ser verdadeiros quando utilizados no momento apropriado. Podemos afirmar, portanto, que o ponto de vista comportamental, mesmo que incapaz de captar em toda a sua profundidade a psique humana, não deixa de ter o seu valor. Se estudarmos a psique só considerando os seus caracteres aprendidos, estaremos tendo uma visão parcial, da mesma forma que se o fizermos unicamente com os caracteres inatos (arquétipos).

A teoria dos complexos

Todavia, se tomamos a dessensibilização sistemática como ferramenta terapêutica, ela resulta compatível com a teoria dos complexos e não precisaremos, portanto, acudir ao princípio de complementaridade.

Uma definição dada por Jung de complexo é a seguinte:
"Complexo afetivo... é a imagem de uma determinada situação psíquica de forte carga emocional... dotada de poderosa coerência interior e tem sua totalidade própria e goza de um grau relativamente elevado de autonomia". (Jung, CW, 8, §201)

As emoções, que necessariamente formam parte dos complexos, têm uma componente corporal.

Os complexos estão constituídos de um núcleo arquetípico, recoberto por material da história pessoal. A palavra "fobia" vem da palavra grega Fobos, o medo. Fobos é também o nome de um deus, filho de um tumultuado affaire que tiveram Ares e Afrodite. Dado que não se conhece um mito específico referente a esse deus, minha proposta é tentar entender o cerne arquetípico da fobia em função do encontro entre os seus progenitores (1). Assim, Fobos estaria expressando o resultado da união entre Ares e Afrodite. Certamente, isso poderia fazer sentido no caso que vai ser apresentado. Ainda assim, ficaria para futuras pesquisas ver a possibilidade de este mito estar expressando o padrão universal da fobia.

O encontro entre Ares e Afrodite expressa uma polaridade simbólica entre Ares, deus da guerra, fator masculino, ativo, auto-afirmativo, dinâmico e tudo o que possamos pensar referente a isso, e Afrodite, deusa do amor, fator feminino, receptivo, passivo, acolhedor, não auto-afirmativo mas reconhecedor do outro. Não é de se estranhar que não se tratasse de uma relação permanente, assentada, senão de um encontro bem tumultuado, visto que se trata de uma expressão extremada desta polaridade. O contato entre dois pólos tão opostos produz uma grande tensão, mas, ao mesmo tempo, em proporção direta a essa tensão, uma enorme possibilidade de fertilização. Desses encontros esporádicos nasceram três filhos. Podemos facilmente entender que tamanho conflito engendrasse Fobos, o medo, e Deimos, o terror; mas houve também uma filha, Hermione ou Harmonia, "a que une". Há, portanto, uma possibilidade de entendimento e integração entre os opostos representados por Ares e Afrodite. Em outras palavras, se a fobia é fruto de um encontro conflituoso entre determinados aspectos do masculino e do feminino, talvez exista também a possibilidade de harmonia entre eles; talvez, portanto, seja possível transformar a fobia numa confluência harmônica entre dois aspectos conflituosos da pessoa.

No entanto, essa possibilidade de trocar a fobia por harmonia não deixa de ser um caso particular de uma lei mais ampla expressada por Jung. A fobia é uma neurose e, para a psicologia junguiana, a neurose tem uma função de reorganização psíquica:

"(A neurose) é uma tentativa de autocura, bem como qualquer doença física também o é... é uma tentativa do sistema psíquico auto-regulador de restaurar o equilíbrio". (Jung, CW, 16/1, §157)

O sintoma fóbico está simbolicamente representando um elemento inconsciente que pressiona para se tornar consciente, mas não o consegue por causa do medo:

"O temor do inconsciente é um poste indicador enganoso, porque aponta sempre para longe do inconsciente, e nos encaminha para a consciência". (Jung, CW, 8, §211)
A partir desta perspectiva, podemos dizer que a dessensibilização sistemática utiliza o medo como poste indicador, seguindo-o em sentido inverso. Aliás, ela age sobre a dimensão corporal do complexo, modificando-o sistemicamente na sua totalidade.

Os sonhos
Para Jung a consciência é uma parte muito limitada da psique. O ponto de vista consciente vai ser, portanto, parcial. Os sonhos têm a função de compensar essa limitação. Se a consciência vê só um lado da realidade, os sonhos vão nos permitir enxergar o outro lado:
“O inconsciente é aquilo que não se conhece num determinado momento, e por isto não é de surpreender que o sonho venha acrescentar à situação psicológica consciente do momento todos aqueles aspectos que são essenciais para um ponto de vista totalmente diferente. É obvio que a função do sonho constitui um ajustamento psicológico, uma compensação absolutamente indispensável à atividade ordenada”. (Jung, CW, 8, §469)

Nas imagens oníricas estarão, deste modo, representados diferentes complexos do sonhador, assim como suas dinâmicas inconscientes.

ESTUDO DE CASO

A Jane (2), 29 anos, solteira, foi atendida numa clínica psicológica. A queixa original era fobia a injeções e depressão. Por problemas de reestruturação da instituição, só foi possível iniciar o atendimento vários meses após ela ter feito a queixa. Nessa datas, ela disse não sentir-se mais deprimida, mas estar ainda preocupada com a fobia, pois várias circunstancias apontavam para um risco grave sobre sua saúde que podia ser prevenido mediante um exame de sangue. Por este motivo, ao notar após várias sessões que a análise ia se encaminhando para outros aspectos sem relação aparente com a fobia, optei por aplicar um tratamento que permitisse sua rápida supressão. Foram combinados dois encontros semanais, num deles seria aplicada a dessensibilização sistemática, no outro seguir-se-ia uma análise convencional, onde o trabalho com sonhos teria um papel crucial.

A dessensibilização sistemática foi aplicada por oito sessões, sendo que pouco tempo após sua finalização a paciente foi capaz de realizar um exame de sangue.

A supressão do sintoma fóbico teve uma série de efeitos paralelos, sendo talvez o principal um aumento da autoestima, o que por sua vez deu à Jane uma base para perceber e questionar determinadas atitudes defensivas, permitindo a sua abordagem e transformação. Provavelmente, este efeito ou outro análogo teria se produzido também sem a terapia analítica. Porém, em casos complicados como o apresentado, pareceu aconselhável uma continuidade do atendimento além da dessensibilização sistemática; de fato, a paciente manifestou seu desejo de continuar em psicoterapia.

A Jane trouxe muitos sonhos à terapia. Por motivos de espaço, vou apresentar apenas uma seleção deles.

Na segunda sessão, antes de ter se falado sobre a possibilidade de aplicar dessensibilização sistemática, a Jante narrou o seguinte sonho:

Estou passando em frente à casa onde eu morava com os meus pais, ela está a venda de novo. Resolvo entrar. Numa cristaleira há correspondência para mim dos últimos anos, entre outras uma carta de uma clínica ou sanatório na Suíça com a qual eu tinha feito contato. Vou até o quintal, lá há a piscina; quando a gente mudou, a água era escura, agora está limpa. Guardo as cartas nas calças e uma na mão para não molhar, mas começa a molhar, a apagar. Saio da piscina, ainda dá para ler. Volto para a sala, não quero voltar para o meu antigo quarto.

Jung chamava de sonho inicial àquele trazido pelo paciente no início da terapia. É freqüente que tais sonhos proporcionem um diagnóstico da condição psicológica do paciente. Este primeiro sonho trazido pela Jane pode ser considerado como sonho inicial. A imagem da clínica da Suíça estava provavelmente aludindo à terapia. Ela tinha começado a ler "Memórias, Sonhos e Refelxões" uma semana antes, mas também é interessante notar que a Jane ainda não sabia da orientação junguiana da terapia – sincronicidade? A imagem da água limpa podia estar sugerindo um bom prognóstico. O fato dela não querer voltar para o seu quarto, pode estar indicando que ela ainda não se sentia preparada para abordar determinados aspectos mais íntimos.

Também a partir deste sonho podia-se conjeturar a existência de temas importantes a resolver em relação à família, representada no sonho pela casa familiar, onde a Jane não morava fazia mais de dez anos. Porém, o medo a se apagar o que estava escrito nas cartas, assim como o fato dela entrar com roupas na piscina, quer dizer, muito defendida, estaria indicando dificuldades para mergulhar o necessário – a escrita estaria falando em aspectos do logos, racionalização como defesa. No transcurso da análise pode-se confirmar esta hipótese, assim como a relação, não aparente no início, que tinha sobre a própria fobia. Isto último ficou patente no sonho que ela trouxe na sessão seguinte a ela ter conseguido se submeter a um exame de sangue, várias sessões após ter terminado a dessensibilização sistemática:

Um ou dois dias antes de ir ao médico e fazer exame de sangue eu tive um sonho que, acho, está relacionado. Sonhei que eu tinha guardado uma chave da casa dos meus pais e sempre que os atuais moradores não estavam eu ia lá e a invadia. Desta vez eu estou lá, mas o novo dono da casa chega inesperadamente, descobre que eu estou lá e me manda devolver a chave. Aí eu sei que esta vai ser a minha última visita. Eu só lembrei desse sonho após ter tirado o sangue.

Se a casa dos pais só apareceu nesses dois sonhos, aquela na qual ela morava aparecia recorrentemente, segundo ela relatou, já desde antes do início do atendimento. Neles, a casa tinha sido invadida. Vide como exemplo um desses sonhos, trazido numa das primeiras sessões, antes de aplicar a dessensibilização sistemática:

Chego na minha casa e vejo que a janela da frente foi arrombada. Entro e não tem ninguém morando, mas tinham levado tudo. Neste momento chega um corretor de imóveis, mostrando a casa para uma família. Falo para eles que é engano, que a casa é minha, mas eles não me dão ouvidos.

O trabalho com esses sonhos mostrava como a invasão da casa se correspondia metaforicamente com o corpo sendo invadido pela agulha. Se nos lembramos da hipótese formulada acima, sobre um conflito entre o masculino e o feminino constituindo o núcleo arquetípico da fobia, fica fácil fazer corresponder casa e corpo com feminino e invasores e agulha com masculino.

Simultaneamente, em atendimentos subseqüentes ia manifestando-se uma grande dificuldade para contatar com o feminino: a Jane tinha um estilo de vida e um modo de pensar bem masculinos; dizia não gostar de tudo que costumam gostar as mulheres; ser mãe, nem pensar! Ela tinha um desempenho profissional muito bom, numa profissão considerada própria de homens. Apesar dela ter um ótimo desempenho nos aspectos técnicos do seu trabalho, não eram infreqüentes os atritos e as brigas com os superiores. Junto a tudo isso, sua vida sentimental era tumultuada e instável.

Uma sessão após ter comunicado a Jane a proposta de aplicar a dessensibilização sistemática, ela trouxe o seguinte sonho:

Entro na minha casa e o hall está limpo, varrido. Eu contratei uma pessoa para fazer serviços de encanamento na casa.

Eu me sinto bem aí.

Esta mudança no tema dos sonhos indicou que a proposta foi bem recebida e produziu um efeito profundo. A imagem dela ter contratado uma pessoa para fazer serviços, alertava também sobre a possibilidade da Jane adotar um papel passivo demais. Possivelmente este seja um perigo nesse tipo de tratamento, sendo aconselhável estar atento para isso não acontecer (lembremo-nos como, no sonho que teve quando conseguiu tirar o sangue, ela foi expulsa da casa dos pais, como se a cura tivesse sido realizada contra sua vontade). No entanto, a partir desse dia, ela continuou sonhando com sua casa, mas iam se produzindo reformas e, quando presentes outras pessoas na casa, não tinham mais esse caráter de invasoras.
Outra série de sonhos, trazidos durante o período em que se aplicou a dessensibilização sistemática, tinham uma relação mais direta com a injeção. Um deles foi o seguinte:

Estou submetendo-me a acupuntura, usando alfinetinhos de costura com bolinhas coloridas. Estou com milhares desses alfinetes na perna e no braço direitos. O acupunturista me ensina que para tirá-las eu tenho que expirar, e eu fico o tempo inteiro inspirando, expirando e tirando as agulhas.

A imagem das agulhas reportava diretamente à fobia. O modo em que a Jane respirava no sonho era associado a como o fazia durante o relaxamento da dessensibilização sistemática. Os alfinetes aludiam também às aulas de geografia da sua infância, onde eram usados para sinalar pontos sobre um globo terráqueo. A acupuntura também baseia-se no conhecimento dos meridianos do corpo. A dessensibilização sistemática estava, portanto, permitindo à Jane um maior auto-conhecimento. Na mesma sessão em que foi trabalhado este sonho, ela expressou o seguinte:

A fobia é um bloqueio que não permite que as minhas possibilidades se realizem.

A dessensibilização sistemática estava permitindo desbloquear essas possibilidades, de modo análogo a como a acupuntura libera a energia.

Numa outra sessão, contou este sonho:
Sonhei que fiz um exame e que tirei sangue com uma agulha. Estava ansiosa para saber o resultado.
Aparece de novo o tema do autoconhecimento: "análise" é um termo que pode ser usado tanto pelo médico para fazer exame de sangue, como em psicoterapia ou em trabalho com sonhos.

Mas, junto com tudo isso, podemos ainda entender estes sonhos como ajudando à Jane a perder o medo de agulha. Neles, Jane não sentia ansiedade, apesar de estar em situações que, durante a vigília, teriam-na horrorizado. Em outras palavras, os sonhos estavam trabalhando como uma dessensibilização sistemática.

Perto da superação da fobia, os sonhos apresentaram conteúdos mais claramente arquetípicos. Estávamos, portanto, nos aproximando do núcleo do complexo. Um desses sonhos teve lugar poucos dias antes de fazer o exame de sangue:

Estou morando com a minha irmã numa casa no campo, de sítio, muito simples. Eu durmo numa cama semelhante a essa (a do consultório), encostada na parede. Resolvo limpar a parede ao lado da cama, a retiro e vejo duas coisas que parecem aranhas. Bato numa delas e descubro que são escorpiões. Chamo a minha irmã, ela me fala: "Que perigo! Você não vai fazer nada? Mata eles!". Bato num deles com uma vassoura e arranco o ferrão, ele se contorce e me olha com uma expressão irada, de ódio, que parece humana. Continuo batendo até matá-lo. Acordei sem ter atacado o segundo escorpião.

Alguns dias depois de ter efetuado exame de sangue, ela contou este outro sonho:
Estou na casa dos meus avós, preciso ir ao banheiro fazer xixi, só que eu tinha que levar junto uma cobra. Peguei ela, segurando-a pela cabeça para que não me picasse. Cheguei ao banheiro, deixei a cobra em baixo de uma almofada segurando-a e, na hora de sair, não sabia como pegá-la de baixo para que não me picasse.

Ambos, escorpião e serpente, são animais venenosos. Ambos injetam o seu veneno, como uma seringa. Sobre ambos podem ser encontradas referências míticas associando-os a temas de morte e cura. No antigo Egito o escorpião era honrado sob a forma da deusa Seltek, protetora de bruxos e curandeiros. A cobra tem a ver com consciência: Eva comeu da árvore da ciência e soube sobre o bem e o mal por causa da serpente. Contato com o sombrio, o venenoso, o primitivo, mas que leva a uma mudança de estado. Produz a consciência, a cura. E todos conhecemos o símbolo das duas serpentes enroscadas num poste, o caduceu do deus Hermes, ainda hoje emblema universal da ciência médica.
Similia similibus curantur (o semelhante cura ao semelhante): o soro para curar a mordedura de serpente é feito a partir do veneno da serpente. Muitos venenos, quando administrados em pequenas doses, funcionam como medicamentos; por sua vez, muitos medicamentos em doses altas atuam como venenos. De modo análogo, a dessensibilização sistemática vai administrando em pequenas doses aquilo que produz fobia, para assim a psique criar defesas.

Se, segundo Jung, estávamos nos aproximando do núcleo arquetípico, a cura devia estar próxima também. De fato, a Jane conseguiu fazer exame de sangue na mesma época em que teve esses dois sonhos. Porém, eles mostravam que ainda tinha coisas por resolver.  

Trabalhando com o primeiro desses sonhos, a Jane identificou a raiva do escorpião com a que ela costumava sentir. A raiva também estaria simbolizada pelo veneno do animal, na medida em que ser tomada pela raiva pode expressar-se metaforicamente como estar envenenada por ela. Assim, a Jane podia ter começado a tomar consciência do que acontecia com sua raiva, mas o sonho mostrava que ainda andava solto um escorpião que podia atacá-la em qualquer momento. No entanto, talvez melhor que matar o escorpião teria sido se habituar ao veneno. De fato, no decorrer da terapia a Jane foi contatando devagar com sua raiva e pode descobrir, debaixo dela, outras emoções que, por estarem reprimidas, não tinham outra forma de se manifestar.

No referente ao sonho da serpente, a casa dos avós estava falando de uma camada profunda da psique, de emoções da infância. Fazer xixi é colocar para fora algo que está em excesso. Só que para isso tem que entrar em contato com a cobra, até talvez para colocar essa energia a serviço do ego.
Mas, como já foi dito, ter conseguido superar a fobia à injeção não significou o fim da terapia. Ela se prolongou por mais dois anos. Mas isso já é uma história que vai além do que eu queria mostrar a respeito da dessensibilização sistemática.

Para terminar esta exposição, vou colocar um sonho que a Jane trouxe perto do final do processo:
Estou vestida de noiva, tentando atravessar uma ponte. Lugar aberto, cidade grande, há muitas pessoas atravessando em ambos os sentidos, há carros no centro, as laterais são para os pedestres. Eu estou andando, atravessando, há obstáculos, cercas, eu tenho que pular, passar no meio dos arames... O meu namorado está comigo na ponte. A gente fala o tempo todo. Atitude de passar obstáculos. É bom, já conheço essa sensação, me dá muita força.

Contrastando com os sonhos que ela trazia no início, podemos apreciar agora uma atitude muito mais ativa, empenhada em superar obstáculos por si mesma. O vestido de noiva fala no sentido da conciliação entre masculino e feminino, cujo conflito, segundo a hipótese formulada no início deste trabalho, pode estar constituindo o núcleo arquetípico da fobia.

CONCLUSÕES


A dessensibilização sistemática pode ser considerada uma terapia corporal e a teoria dos complexos permite justificar a sua aplicação dentro de um atendimento de orientação junguiana.
Combinar o trabalho com sonhos com a dessensibilização sistemática mostrou-se de grande ajuda no caso apresentado. Permitiu considerar a totalidade da pessoa, além do sintoma; possibilitou selecionar temas relevantes no decurso da terapia, em particular aqueles decorrentes do uso da dessensibilização sistemática. Os sonhos ajudaram também a determinar o momento de finalizar a análise. Evidenciou-se ainda como alguns sonhos funcionam do mesmo modo que uma dessensibilização sistemática.

NOTAS


(1) Uma exposição mais ampla encontra-se em Bein, C.: "Um mito para a fobia".
(2) Nome imaginário. Os dados que podiam facilitar a identificação da paciente foram mudados também.

BIBLIOGRAFIA


Caballo, Vicente (dir.). "Manual para el tratamiento cognitivo-conductual de los trastornos psicológicos", Siglo Veintiuno de España Editores, S.A., Madrid, 1997

Foulquié, Paul; Delendalle, Gérard. "A psicologia contemporânea". Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1977

Heisenberg, W. "La imagen de la naturaleza en la Física actual", Seix y Barral Hnos., S.A., Barcelona, 1976

Hillman, James, "Psicología Arquetípica", Cultrix, São Paulo, 1992, 1995 (9)

Hillman, James, "Encarando os Deuses", Cultrix/Pensamento, Sao Paulo 1992, 1997 (12)

Jung, C.G.. "A dinâmica do inconsciente" - Obras Completas de Jung, Volume 8", Vozes, Petrópolis 1984

Jung, C.G., "Fundamentos de psicologia analítica" - Obras Completas de Jung, Volume 18, Vozes, Petrópolis

Texto de autoria de Carlos Bein. Formado em psicologia pela Universitat Autònoma de Barcelona (Espanha). Mestre em Ciências da Religião pela Pontifícia Universiade Católica de São Paulo. Especialidade no psicodiagnóstico de Rorschach pela Societat Catalana del Rorschach i Métodes Projectius (Barcelona, Espanha). Especialização em Teoria Junguiana coligada a Técnicas Corporais (Instituto Sedes Sapientiae, São Paulo). Terapeuta parceiro na Clínica CEAAP, onde coordenou diversos cursos sobre Jung e os sonhos, e realizado supervisões individuais e de grupo na linha junguiana

 

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