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A fobia é uma neurose e, na psicologia junguiana, a neurose tem uma função de reorganização psíquica:

"(A neurose) é uma tentativa de autocura, bem como qualquer doença física também o é... é uma tentativa do sistema psíquico auto-regulador de restaurar o equilíbrio, que em nada difere da função dos sonhos, sendo apenas mais drástica e pressionadora". (Jung, CW 16/1, § 157)

Texto de autoria de Carlos Bein. Formado em psicologia pela Universitat Autònoma de Barcelona (Espanha). Mestre em Ciências da Religião pela Pontifícia Universiade Católica de São Paulo. Especialidade no psicodiagnóstico de Rorschach pela Societat Catalana del Rorschach i Métodes Projectius (Barcelona, Espanha). Especialização em Teoria Junguiana coligada a Técnicas Corporais (Instituto Sedes Sapientiae, São Paulo). Terapeuta parceiro na Clínica CEAAP, onde coordenou diversos cursos sobre Jung e os sonhos, e realizado supervisões individuais e de grupo na linha junguiana
Se os arquétipos são os componentes universais da psique, podemos dizer que neles está, ou que eles geram, esse potencial auto-regulador. Neste sentido, James Hillman (1997) utiliza-se de uma citação de Jung a fim de considerar a psicopatologia na sua dimensão arquetípica, para "reconhecer os próprios Deuses como patologizados, a "infirmitas do arquétipo" (Hillman, 1997, p.11):

"Os deuses tornam-se doenças; Zeus não mais governa o Olimpo mas, antes, o plexo solar, e produz curiosos especimes para o consultório médico (Jung apud Hillman, 1997, p. 69).

Daí Hillman conclui que a doença, entanto que arquetípica, é universal e necessária:

"Ao pressupor que o necessário é o que ocorre entre os Deuses, isto é, que os mitos descrevem padrões necessários, concluímos que as suas patologizações são necessárias, assim como as nossas são necessárias à mímese das deles. Uma vez que a infirmitas deles é essencial para a sua configuração plena segue-se que nossas patologizações são necessárias à nossa completude". (Hillman, 1997, pp. 12-13)

Consequentemente, podemos considerar que o sintoma fóbico tem um motivo para se fazer presente, e este motivo será, em última análise, a completude da pessoa que dele padece, ou seja, a individuação. Em outras palavras, esse potencial auto-regulador, acima indicado, do arquétipo, opera através da própria fobia (similia similibus curantur).

Decorre do anterior que …

"...os mitos e suas figuras podem ser examinados como padrões de patologia" (Hillman, 1995, p. 69).

Tratar-se-ia então de encontrar um mito que expresse o padrão universal da fobia. Não achei nenhum material entre os autores junguianos consultados que relacionasse diretamente a fobia com um mito. Estive, então, pesquisando em diversos livros de mitologia à procura de um tal mito. Nesta pesquisa, me deparei com o deus grego Fobos e, tendo a palavra portuguesa "fobia" sua origem etimológica no nome desse deus, achei interessante aprofundar-me no estudo desse personagem.

Fobos é filho de Ares e Afrodite. Junto com o seu irmão Deimos, ele acompanhava ao seu pai, deus da guerra, no campo de batalha. Na breve pesquisa bibliográfica realizada, Fobos é traduzido por Medo (De Souza Brandão, 1989; Kerenyi, 1994; Lefevre, 1976) e também por Receio (Commelin, 1941). Ambas palavras, quase sinônimas, expressam o aspecto de temor indissociável da fobia e ambas podem ser entendidas como a causa da conduta de esquiva, própria da fobia. Isto último ficando registrado na seguinte citação:

"Filho de Marte e Vênus. Personificação do Medo, acompanhava seu pai nos campos de batalha, incitando os combatentes a fugir". (Lefevre, 1976)

Acontece que, segundo os autores consultados, não existe um mito próprio para Fobos; talvez existiu e, no transcorrer dos séculos, foi esquecido. Será que um tal mito, de existir e ser conhecido, nos ajudaria a compreender melhor os transtornos fóbicos? Ou talvez o nome de fobia foi dado simplesmente pelo fato da pessoa fóbica sentir medo e fugir perante o estímulo fóbico, como se este estivesse acompanhado por Fobos? Será que isto é suficiente para expressar o padrão da fobia?

Nos resta ainda uma terceira opção, que seria a de entender a Fobos em função do encontro amoroso entre Ares e Afrodite, do qual dão conta diferentes autores clássicos. Esta figura poderia estar então expressando um possível resultado do encontro entre amor e guerra, masculino e feminino... Certamente, isso poderia fazer algum sentido em alguns casos atendidos na clínica. Ainda assim, eu não ousaria afirmar que este mito esteja expressando o padrão universal da fobia. Ficaria para futuras pesquisas ver a possibilidade de generalizá-lo para todos os casos de fobia. Por não ser assim, espero que o leitor possa ao menos se distrair com a história que vai lhe ser contada.

Homero (A Odisséia, seg. Kerenyi e Commelin), Ovídio (Commelin) e Hesíodo (Kerenyi) relataram os amores entre Ares e Afrodite –ou Marte e Venus, nas versões latinas. Estes deuses se apaixonaram um pelo outro e tinham seus encontros segredos no palácio de Hefesto, marido de Afrodite. Ninguém sabia disso e Ares colocara Alectrion, seu favorito, como sentinela; mas, tendo este adormecido, Febo, o Sol, rival de Ares frente à bela deusa, percebeu os culpados e foi prevenir Hefesto. O feio esposo de Afrodite, ferreiro, "o mais engenhoso de todos os filhos do céu" (Homero, citado por De Souza Brandão, p.45), construiu uma rede invisível onde aprisionou sua esposa em adultério flagrante com Ares, deixando-os expostos por vários dias ao riso e, porque não dizer, ao desejo dos demais deuses. Assim, sendo Hermes perguntado por Apolo, entre gargalhadas, se gostaria de estar preso na rede ao lado de Afrodite, respondeu-lhe:

"Se eu pudesse, deixar-me-ia de bom grado acorrentar com correntes três vezes mais fortes! E todos vós, deuses e deusas, poderiam vir e olhar para mim –tão alegremente me deitaria eu ao lado da áurea Afrodite" (Kerenyi, p. 68-69).

Posídon suplicou a Hefesto que libertasse Ares e ele o fez, de má vontade. Ares castigou Alectrion mudando-o em galo, que, desde então, procura reparar seu erro, anunciando com o canto o nascimento do astro do dia.

O encontro entre Ares e Afrodite expressa uma polaridade simbólica entre Ares, deus da guerra, fator masculino, ativo, auto-afirmativo, dinâmico e tudo o que pudermos pensar em relação a isso, e Afrodite, deusa do amor, fator feminino, receptivo, passivo, acolhedor, não auto-afirmativo mas reconhecedor do outro. Não é de se estranhar que não se tratasse de uma relação permanente, assentada, mas um encontro bem tumultuado, visto que se trata de uma expressão bem extremada desta polaridade. O contato entre dois pólos tão extremos produz uma grande tensão, mas, ao mesmo tempo e em proporção direta a essa tensão, há uma enorme possibilidade de fertilização.

Desses encontros esporádicos nasceram três filhos. Podemos facilmente entender que tamanho conflito engendrasse os já mencionados Fobos e Deimos; mas houve também uma filha, Hermione ou Harmonia, "a que une" (Kerenyi, p.67); igualmente, segundo algumas versões, o próprio Eros –o Amor– e Ânteros –a resposta ao amor– foram filhos de essa união (Cícero, De Natura Deorum, em Kerenyi, p.67). Há, portanto, uma possibilidade de entendimento e integração entre os opostos representados por Ares e Afrodite. Em outras palavras, se a fobia é fruto de um encontro conflituoso entre determinados aspectos do masculino e do feminino, talvez exista também a possibilidade de harmonia entre eles; talvez, portanto, seja possível transformar a fobia num encontro harmônico entre dois aspectos conflituosos da pessoa. Lembremo-nos da opinião de Jung acima citada segundo a qual a neurose é uma tentativa de auto-cura e de restaurar o equilíbrio psíquico. Se nesta citação trocássemos a palavra "equilíbrio" por "harmonia", em nada mudaria o seu sentido.

Deste modo, pode fazer sentido olhar para a fobia como uma doença que abre a possibilidade à pessoa que dela padece de contatar com diferentes manifestações do masculino e do feminino, assim como a de trocar em harmonia o conflito existente entre elas. Podemos voltar a Hillman para concluir este escrito:

"...é principalmente através dos ferimentos na vida humana que os deuses entram (e não através de eventos pronunciadamente sagrados ou místicos), porque a patologia é a maneira mais palpável de testemunhar os poderes que estão além do controle do ego e mesmo da insuficiência da perspectiva egóica". (Hillman, 1997, p. 71)

Referências:

Commelin, P.- Nova mitologia grega e romana. F. Briguet & Cia. Editores, Rio de aneiro, 1941

Kerenyi, Karl. "Os deuses gregos" Cultrix, São Paulo 1994, 1998 (10)

Souza Brandço, Junito De, "Mitologia grega, vol. II". Vozes, Petrópolis 1989 (3), p. 40)

Lefevre, Silvia; Simões, Maria Isabel; Alvarenga, José Roberto. "Dicionário de mitologia greco-romana", Abril Cultural, São Paulo 1976 (2)

Jung, C.G., "A prática da psicoterapia - Obras Completas de Jung, Volume XVI/1", Vozes, Petrópolis 1997

Texto de autoria de Carlos Bein. Formado em psicologia pela Universitat Autònoma de Barcelona (Espanha). Mestre em Ciências da Religião pela Pontifícia Universiade Católica de São Paulo. Especialidade no psicodiagnóstico de Rorschach pela Societat Catalana del Rorschach i Métodes Projectius (Barcelona, Espanha). Especialização em Teoria Junguiana coligada a Técnicas Corporais (Instituto Sedes Sapientiae, São Paulo). Terapeuta parceiro na Clínica CEAAP, onde coordenou diversos cursos sobre Jung e os sonhos, e realizado supervisões individuais e de grupo na linha junguiana