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Abstract

O presente artigo é um repaso geral sobre a electrofisiologia do sono e do sonho com suas implicações a respeito do fenômeno onírico, seguido de uma comparação entre as noções junguiana e jouvetiana de Processo de Individuação.

Texto de autoria de Carlos Bein. Formado em psicologia pela Universitat Autònoma de Barcelona (Espanha). Mestre em Ciências da Religião pela Pontifícia Universiade Católica de São Paulo. Especialidade no psicodiagnóstico de Rorschach pela Societat Catalana del Rorschach i Métodes Projectius (Barcelona, Espanha). Especialização em Teoria Junguiana coligada a Técnicas Corporais (Instituto Sedes Sapientiae, São Paulo). Terapeuta parceiro na Clínica CEAAP, onde coordenou diversos cursos sobre Jung e os sonhos, e realizado supervisões individuais e de grupo na linha junguiana

Introdução

Sonhar é um fenômeno que sempre fascinou o ser humano. Durante a noite, somos transportados para outro mundo onde podem acontecer as coisas mais maravilhosas. Podemos realizar façanhas inimagináveis, ser transportados a lugares extraordinários, subir aos céus ou descer aos infernos, interagir com deuses ou diabos, nos encontrar com pessoas que já morreram… Todo esse mundo de experiências fantásticas contrasta com a imobilidade da pessoa que dorme. Aparentemente, aquele que está sonhando deixou de viver. Não resulta difícil entender que na Antigüidade se pensasse que o sonho permitia enxergar além da morte e entrar em contato com os antepassados e os deuses. Assim também na mitologia grega, Hypnos, deus do sono, era irmão gêmeo de Tânatos, a morte.

O descanso foi outra experiência logo associada ao sono e, certamente, hoje em dia ninguém questiona que esta seja uma das suas principais funções. Mas é também um fato da experiência comum que, em noites nas quais se sonha muito, a pessoa acorda cansada. Acordamos cansados quando dormimos em excesso e a sabedoria popular aconselha a não dormir mais do que o necessário. Hoje sabemos que isso é porque nas últimas horas do sono é quando se produzem mais sonhos e que sonhar cansa.

Em parte devido a isso, em parte também pela própria experiência do sonhar ter muito em comum com a consciência da vigília, com freqüência tem se entendido o sonho como um estágio intermediário entre o sono e a vigília. Assim, por exemplo, Alfred Maury (1817-1892) considerava o sonho como uma semi-vigília. A própria concepção freudiana do sonho como guarda do sono encaixa-se dentro dessa idéia, já que um guarda precisa estar vigilante.


Eletrofisiologia do sono

Ao longo do século XX estas idéias foram se modificando. Em meados dos anos 30, graças à novidade que representou a eletrencefalografia, Alfred Loomis, fisiologista na universidade de Princeton, estudou o eletrencefalograma (EEG) de uma pessoa dormindo e descobriu que, quando dormimos, o cérebro não descansa; pelo contrário, permanece ativo, portanto em nada semelhante a um cérebro morto.

Um segundo grande passo no conhecimento da fisiologia do sono foi dado por Aserinsky e Kleitman, da universidade de Chicago. Há muito tempo se sabia que durante o sono se produzem movimentos dos olhos. Nos anos 50, esses pesquisadores registraram graficamente os movimentos oculares e comprovaram que correspondiam a uma pauta de ondas rápidas no EEG. William Dement, assistente de Kleitman naquela época, chamou a esse estágio em que se produziam esses movimentos oculares como sono REM ou dos movimentos oculares rápidos (rapid eye movements), para distingui-lo do outro estágio, o não-REM.

Nos seres humanos, uma noite de sono costuma-se dividir em ciclos de 90 a 110 minutos, cada um deles formado por quatro fases ou estágios, que correspondem a atividades elétricas cada vez mais lentas (por isso lhe é dado também o nome de sono lento) e de maior voltagem do cérebro. Essas diferentes fases não são acompanhadas de movimentos oculares. Quando se desperta uma pessoa durante o sono lento ou não-REM, raras vezes ela lembra de estar sonhando, ou pelo menos os sonhos que lembra têm um caráter menos vívido. O estágio 1 é o curto e leve adormecimento que tem lugar ao se iniciar o sono; os níveis 3 e 4 são os de sono profundo ou sono Delta, por ser este o nome das altas e amplas ondas que nele se registram, e o nível 2 é um sono médio, ainda pouco conhecido que ocupa a metade ou mais de todo o período de sono noturno.

As fases de sono lento estão entrecortadas pelo surgimento da já mencionada fase REM, caracterizada por uma atividade cortical rápida, idêntica à da vigília, acompanhada de movimentos oculares rápidos. Aproximadamente 20% do sono dos humanos é de tipo REM. O primeiro período REM que se produz durante o sono, é o mais breve e dura aproximadamente 10 minutos; os seguintes duram entre 20 e 40 minutos.


O sonhar não-REM

Destes primeiros estudos foi concluído que o sonhar só acontecia na fase REM, sendo o não-REM um "sono sem sonhos". Fizeram-se estudos nos quais eram registrados os EEGs de pessoas dormindo, às quais se despertava em diferentes fases do sono e se lhes perguntava se estavam sonhando. Foram muito freqüentes os relatos de sonhos quando as pessoas eram despertadas durante a fase REM, enquanto o despertar no período não-REM usualmente não era acompanhado de lembranças de sonhos. Este fato parecia confirmar a idéia do sono REM como próximo à vigília, sendo os sonhos as primeiras manifestações da consciência num estágio intermediário entre esta e o sono. De todo modo, estudos posteriores mostraram que durante o sono lento também se sonha, só que os sonhos desta fase têm características diferentes dos que se produzem durante a fase REM. Comparadas com as lembranças dos períodos REM, as do sono lento são geralmente menos ricas, menos vívidas, menos visuais, sujeitas a um maior controle da vontade, mais semelhantes com os pensamentos da vigília e mais ligadas ao cotidiano. Isso foi descoberto quando, em lugar de perguntar as pessoas acordadas durante o sono lento: "Estava você sonhando?", perguntava-se: "Estava você pensando alguma coisa?". Obtiveram-se deste modo um número muito maior de "lembranças oníricas" do que em pesquisas precedentes. Aclarado isso, quando neste artigo falarmos em sonhar, estaremos nos referindo ao sono REM.

Ao ver que as ondas cerebrais do sono REM eram iguais às da vigília, Kleitman, Aserinsky e Dement o equipararam à fase 1 do sono lento. Pensaram assim: a fase 1 é a primeira fase do adormecimento, as ondas cerebrais são mais rápidas do que as das fases 2 a 4, portanto é uma fase que conduz da vigília ao sono (descending stage one ou primeiro estágio descendente). Se entre a vigília e o sono há uma fase intermediária, a descending stage one, o sono REM, de ondas cerebrais rápidas, deve ser o estágio intermediário correspondente entre o sono e a vigília. O sono REM passou assim a ser chamado emerging stage one ou primeiro estágio emergente.

Em outras palavras, continuavam achando que o sono REM era um sono superficial, próximo ao despertar, pois, de fato, a atividade elétrica do cérebro durante esta fase é idêntica à da vigília.


O sono paradoxal

Em 1959, Michel Jouvet, diretor da Unidade de Pesquisa de Neurobiologia dos Estados de Vigília no Centre National de Recherche Scientifique (CNRS), na França, publicou suas primeiras pesquisas sobre sonhos. Junto à atividade elétrica do cérebro, ele registrou também a atividade muscular. Comprovou que as quatro fases do sono lento correspondiam a uma diminuição progressiva do tônus muscular, o que confirmaria a hipótese da escola de Chicago de que em cada fase o sono era mais profundo. A surpresa aconteceu ao comprovar que a fase REM, de ondas rápidas semelhantes às da vigília, considerada pela escola de Chicago como correspondente à fase 1 ou de adormecimento, apresentava uma total ausência de tônus muscular. Jouvet qualificou de paradoxal a essa fase do sono, pois quando o EEG indicava uma atividade cerebral semelhante à da vigília, o eletromiograma registrava ao nível muscular um sono mais profundo ainda que o não-REM.

Por outro lado, assim como no transcorrer das fases 1 a 4 do sono lento a pessoa reage cada vez menos a estímulos sensoriais, durante a fase REM apresenta-se uma reatividade ainda menor. É, portanto, mais difícil despertar uma pessoa durante a fase REM do que durante a não-REM.

Um outro paradoxo foi apontado por Jouvet. Sonhar é um fenômeno que requer muita energia. A consciência onírica gasta uma quantidade de energia até maior do que a consciência desperta. O aumento das reservas energéticas, que antigamente se acreditava acontecia durante todo o sono, na verdade só se produz durante o sono não-REM. Jouvet chega a propor que uma das funções do sono não-REM é a de acumular energia para ser gasta durante o sono REM.

O estudo comparado do sono em diferentes espécies animais permite entender um pouco melhor esses paradoxos. O sono REM aparece nos homeotermos, também conhecidos como animais de sangue quente (aves e mamíferos). Peixes, anfíbios e répteis (animais de sangue frio ou poiquilotermos) não sonham.

Entre os homeotermos, a proporção entre sono REM e não-REM experimenta grandes variações nas diferentes espécies. A vaca e a galinha sonham em média uns 25 minutos por noite; o chimpanzé, 90 minutos; o homem, 100 minutos, e o gato doméstico chega a sonhar até 200 minutos. O critério para a quantidade de sono REM não é, portanto, o nível de cerebralização. Ao que parece, os animais "caçadores" sonham mais do que os animais "caçados". Efetivamente, se antes vimos que o sono REM aumenta o umbral do despertar, os animais serão mais vulneráveis quando neste estado. Portanto, quanto menor a probabilidade de uma espécie ser atacada durante o sono, maior tempo pode se permitir de dormir profundamente ou, em outras palavras, de sonhar. Contudo, são freqüentes despertares fugazes durante o período do sonho paradoxal. Às vezes isso se interpreta como o sonhar estando próximo da vigília, mas na verdade esses despertares periódicos funcionariam precisamente para compensar a maior vulnerabilidade durante esse período, ao oferecer a possibilidade de explorar brevemente o ambiente em busca de possíveis inimigos antes de cair novamente no sono.

Se o organismo gasta tanta energia durante o sono REM; se a seleção natural o conservou apesar da indefensabilidade que produz esse estado por causa do aumento do umbral de despertar, deduz-se disso que o sonhar – ou, melhor, o sono REM, pois já vimos que também existe um sonhar não-REM – deve ter alguma função muito importante.

Pensou-se que a carência de sono REM mostraria uma série de mudanças de comportamento que permitiriam deduzir qual é a sua função. Fizeram-se diversos experimentos com gatos e com seres humanos em laboratório, consistindo em despertá-los no momento em que se iniciava a fase REM. Os primeiros experimentos realizados mostraram, com efeito, uma série de transtornos notáveis, tanto nos gatos quanto nos seres humanos. Chegou-se inclusive a concluir que a supressão do sono REM podia causar psicose. Contudo, estudos posteriores mostraram que esses transtornos, mais do que devidos a uma supressão do sono REM, eram uma conseqüência do estresse causado por acordar aos sujeitos com tanta freqüência. O descobrimento de fármacos, como os inibidores das monoaminoxidases ou os antidepressivos tricíclicos, que diminuem e até chegam a suprimir o sono REM, permitiu comprovar que um ser humano pode viver por longos períodos sem sonhar e sem que isso produza nenhum transtorno aparente.

Muitos experimentos apontam a existência de uma estreita relação entre sonhar e aprendizagem. Por exemplo, tem-se demonstrado que o sono REM tem um importante papel em transformar a memória de curto prazo em memória de longo prazo; também, privação de sono REM resulta em dificuldade para realizar aprendizagens difíceis, assim como após ter-se realizado aprendizagens difíceis produz-se um aumento de sono REM. Aprendizagens fáceis, que são realizadas rapidamente, estariam de algum modo pré-programadas; esses aprendizados não são alterados pela privação do sono paradoxal. Porém, os aprendizados não programados, que se realizam lentamente e exigem a integração de informações não habituais e a elaboração de uma estratégia comportamental nova, são os que se vêem alterados pela privação do sono paradoxal. O sono REM aumenta entre 30 e 60% após esses aprendizados. Quando o novo aprendizado está dominado, o tempo do sono REM volta aos níveis prévios.


Individuação

Jouvet propõe uma hipótese sobre a função do sonhar, segundo suas próprias palavras "pessoal e rebatível e, portanto, não científica". (Jouvet, 1988, p.47)

Segundo essa hipótese, durante o sono paradoxal entraríamos em contato com as nossas raízes instintivas e as treinaríamos nesse cenário fictício que é o sonho para tê-las disponíveis caso precisássemos delas, mesmo em ausência de um requerimento ambiental para se produzirem. O organismo precisa saber como fazer tudo o que é essencial para sobreviver antes mesmo de produzir esses atos. A necessidade para o organismo desses treinos estaria em que o sistema nervoso é sumamente plástico e as conexões neuronais facilmente são modificadas pelas influências do ambiente. Sonhar reforçaria periodicamente conexões neuronais responsáveis pela herança psicológica para mantê-las funcionais. Deste modo, poderiam se restabelecer determinados circuitos que teriam sido alterados por acontecimentos epigenéticos.

Mas esses comportamentos geneticamente pré-programados não se limitam, nos animais superiores e muito particularmente nos seres humanos, àqueles estereotipados, compartilhados por toda uma espécie, que normalmente se chama de instintos. Pelo contrário, a variabilidade individual é vantajosa para os animais superiores e está contida no seu programa genético: que existam indivíduos com qualidades individuais diferentes, predispostos a reagir de um modo diferenciado, permite uma maior possibilidade de dar resposta a diferentes características do ambiente, assim como às mudanças que dele possam sobrevir. Portanto, abre uma maior possibilidade de sobrevivência para a espécie. Jouvet chama de individuação a essa diferenciação individual e, segundo ele, os sonhos teriam a função de desenvolvê-la. Assim, durante o sonho poder-se-ia efetuar um infinito jogo combinatório entre a herança psicológica e os aprendizados adquiridos durante a vigília, disponibilizando novas estruturas de pensamento, que permitiriam enfrentar novos problemas.

Para apoiar esta hipótese, Jouvet cita, entre outros exemplos, o fato de que, nos gulag da antiga União Soviética, administravam-se psicofármacos que suprimiam o sono REM aos dissidentes políticos. Certamente, as pessoas que não sonham esquecem da sua individualidade e se adaptam melhor ao ambiente ideológico. O fracasso histórico em mudar o ser humano mudando o ambiente que o envolve se deveria, segundo Jouvet, a que as pessoas nunca deixaram de sonhar. Muita propaganda há sido vertida, muitos foram fuzilados para convencer a outros a "pensarem bem", mas as pessoas seguem sonhando e sustentando opiniões diferentes.


Os Grandes Sonhos e a individuação na psicologia junguiana

Para concluir, gostaria de mencionar a semelhança entre as hipóteses de Michel Jouvet e as noções junguianas de Grandes Sonhos e de processo de individuação. Se Jouvet partiu da fisiologia do sistema nervoso, Jung o fez do estudo da mitologia e dos sonhos.

Jung observou que a maioria dos sonhos dos seus pacientes mostrava conteúdos que tinham a ver principalmente com a vida pessoal. Porém, em determinados momentos críticos, chamava a atenção a quantidade de material mítico que aparecia nos sonhos, aparentemente sem conexão com as circunstâncias da pessoa que os teve, dando a impressão que o inconsciente estava querendo expressar uma mensagem extraordinária. Jung chamou a esses de Grandes Sonhos.

Os sonhos constituem para Jung um processo de auto-regulação psíquica que, baseando-se nas experiências passadas, tanto do indivíduo quanto da espécie, as reorganiza orientando-as para uma melhor adaptação futura. Quando a pessoa se encontra em uma situação na qual precisa dos seus recursos instintivos, estes aparecem nos sonhos em forma de imagens míticas, já que os mitos são a linguagem universal na qual os instintos se expressam. Jung costumava falar em arquétipos em lugar de instintos, pois a palavra instinto refere-se ao comportamento observável, enquanto arquétipo corresponderia à vertente psíquica do instinto. Os Grandes Sonhos eram então definidos como aqueles nos quais predominava o material arquetípico. Assim, Jouvet parece dizer que, na verdade, todo sonho é um Grande Sonho no sentido junguiano, pois conecta-se com as forças instintivas e as atualiza.

Jung chama de individuação –a mesma palavra que anos mais tarde adota Jouvet– a um processo que pode ser observado ao analisar longas séries de sonhos. Segundo este autor, através dos sonhos o inconsciente compensa posições unilaterais da consciência. Mas, ao examinar uma longa série de sonhos, vê-se como estas compensações, aparentemente isoladas, obedecem a um plano predeterminado que as liga umas às outras subordinando-as, em sentido mais profundo, a um processo de desenvolvimento e de organização. Jung designou a este fenômeno inconsciente pelo nome de processo de individuação. Mediante ele, é produzido um novo centro da personalidade, chamado Self, composto ao mesmo tempo pela consciência e pelo inconsciente.

Não poderíamos afirmar que ambas as idéias são idênticas. Jung considera que a individuação tem como meta o desenvolvimento da personalidade individual, enquanto que, para Jouvet, se trataria de um processo cego, resultado da seleção natural, isento desse caráter teleológico apontado por Jung. Contudo, não deixa de ser muito sugestiva a semelhança entre a individuação junguiana e a jouvetiana.


Bibliografia

Hobson, J. A. (1988). "El cerebro soñador". Fondo de Cultura Económica, México, 1994

Jouvet, M. (1992). "El sueño y los sueños". Fondo de Cultura Económica, México, 1998

Jung, C.G. (1934). "A dinâmica do inconsciente". Obras Completas, Volume 8. Vozes, Petrópolis 1984

http://sommeil.univ-lyon1.fr/jouvet/en/

Texto de autoria de Carlos Bein. Formado em psicologia pela Universitat Autònoma de Barcelona (Espanha). Mestre em Ciências da Religião pela Pontifícia Universiade Católica de São Paulo. Especialidade no psicodiagnóstico de Rorschach pela Societat Catalana del Rorschach i Métodes Projectius (Barcelona, Espanha). Especialização em Teoria Junguiana coligada a Técnicas Corporais (Instituto Sedes Sapientiae, São Paulo). Terapeuta parceiro na Clínica CEAAP, onde coordenou diversos cursos sobre Jung e os sonhos, e realizado supervisões individuais e de grupo na linha junguiana

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